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Mortos como cães
05 de março de 2015 17:08
Mortos como cães

Não acredito que, na vida, haja pior coisa do que a insensibilidade moral em relação ao próximo, seja ele quem for. “Coitado, era um mendigo. Pelo menos, parou de sofrer”, disse uma pessoa do meu círculo de amigos. Assistíamos no telejornal a triste notícia sobre o morador de rua morto, durante a madrugada, enquanto dormia sob uma marquise, na cidade de São Paulo. Assassinado como se fora um simples cão de rua. Foi mais uma vítima da indiferença.

O caso me fez recordar a fatídica primeira metade da década de 2000, quando 15 ou 16 moradores de rua foram massacrados a golpes de objetos de metal e pedaços de pau. A cena, digna do Inferno de Dante, aconteceu na Praça da Sé, região central paulistana. Eram sem-tetos, miseráveis, embora muitos trabalhassem. Foram imprudentes ao dormir naquelas imediações. Na verdade, além de estar desprotegidos, estavam completamente abandonados.

Pensar que, até poucos meses antes, podiam ir a certa instituição filantrópica no centro da cidade, onde comiam uma nutritiva sopa, tomavam banho, ganhavam roupas. Muitos até eram encaminhados a tirar novos documentos e conseguiam trabalho. Recebiam orientação e aconselhamento.

Era até engraçado ver que tratavam seu benfeitor como “Tio Teo” e, nas ruas, referiam-se a ele como “Tiozão”. Foram as primeiras vezes que ouvi a expressão que seria popularizada pela propaganda anos depois. Mas como certas coisas se modificam – que tristeza! – para pior, mudou a diretoria e o “novo modelo de gestão” fez que fossem escorraçados como cães vira-latas. Muitos até sofreram espancamentos por seguranças ao tentarem, inadvertidamente, entrar na instituição.

Enquanto a polícia investigava a ocorrência, chegando a deter alguns improváveis suspeitos, a mídia ouvia explicações de especialistas em segurança, juristas, psiquiatras, religiosos e outros dissecarem as possíveis causas dos crimes. Teorias foram expostas para explicar a violência no ser humano, pouco contribuindo, no entanto, para desvendar o pesado véu da barbárie naqueles que praticaram os crimes.

Revelando total desdém pelo sofrimento alheio, entre quatro paredes, como a eximir-se de eventuais responsabilidades, alguns repetiram lugares-comuns doutrinários: “Não cai uma folha sem que Deus o saiba”, “ninguém paga um ceitil sem que o deva”... Ah, quanto mal fazem ao mundo a hipocrisia religiosa e a falta de amor.

Sinto muito, entretanto, perante esse contexto, por não concordar com o uso hipócrita dessas expressões, as quais permitem vislumbrar em seus desvãos a mesma espécie de frieza pilatiana diante da condenação do Cristo. A eles respondo – conquanto tardiamente – que “o escândalo há de vir, mas ai daqueles por quem vier”, se o mal estiver em seus corações...

Excluídos sociais morrem nas ruas brasileiras de maneira violenta a uma média alarmante: um a cada dois dias, segundo relatório do Movimento Nacional da População de Rua, entregue na última semana de 2011 à presidente Dilma Rousseff, que se referiu de modo critico a essa situação como “limpeza humana”. O Movimento desenvolvia a campanha "Ninguém é invisível" e pedia a criação de políticas públicas eficazes, para combater o genocídio nas ruas.

Muitos dos mortos até receberam enterro quase digno, envoltos em mortalhas limpas e acondicionados em caixões de madeira nobre, doados por piedoso e anônimo empresário católico. Mereceram bênçãos de um padre e orações de um pastor evangélico. Pena que alguns não tiveram nomes nessa hora final, apenas um número os identificava. Pagaram caro pelo aprendizado na Terra – e o realismo doutrinário diz: “Ninguém paga sem dever” –, enquanto alimentavam a esperança de desfrutar, no Céu, da proteção do eterno teto de estrelas.

Lembro-me das cenas, tristes e vergonhosas, de quantos moradores de rua viram-se impedidos de entrar naquela grande instituição, antes tão singela, mas agora luxuosa, por não estarem condignamente trajados e, por trágica evidência, não terem condições de entregar o valioso óbolo estipulado a partir de um valor mínimo. Podem, quando muito, sentar-se na calçada, ou passearem para cá e para lá, ao lado de cães vira-latas, invisíveis como sempre.

Se não mais lhes permitem lavar as mãos e o rosto, tomar um rápido banho, trocar de roupas, gostaria de dizer a eles que sua consolação é a de que não seriam repelidos por Jesus: “Deixem que venham a mim os simples”, diria o Mestre com um sorriso, enquanto lhes estenderia um pedaço de pão. Ah, e não receberiam o enviesado e mortal olhar da indiferença.

 

 

 

 


J. G. Pascale






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